A hora de partir

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O sol está baixando e eu ainda estou esperando você. Nada me resta agora, já te entreguei tudo. Só posso esperar. Na calçada, eu ao lado da inércia, juntos, observamos os minutos se desmancharem.

No bolso, tenho  apenas algumas memórias e o meu sorriso. E quando fecho os olhos vejo você chegando. Desculpe, estou atrasado, você diz. Me apeguei as suas promessas. Você me olhou nos olhos, não resisti.

Enfim chegamos a esse ponto. Eu esperando como no último capítulo. Tentei te alcançar, mas você foi rápido demais. Não olhou pra trás.

Agora, está ficando escuro e eu preciso partir. Quem sabe não nos vemos lá na frente? Não, eu não vou te esquecer. Você sabe que não. Mas, meus pés estão começando a ganhar vida. Vou caminhar até o amanhecer. E quando o primeiro raio de sol tocar minha pele, estarei lá, mais uma vez; esperando.

O Convite

O Convite

Passos arrancam pequenos gritos do chão forrado com galhos secos. Uma figura alta e esguia se aproxima entre as sombras de árvores anciãs. Sob a penumbra, a atmosfera de medo se alastra. A face oferece um semblante severo; das mãos escorrem filetes de sangue misturados com terra. O caminhar cessa. Silêncio. Ele o encara com feições mórbidas esboçando um sorriso. Em um movimento delicado, leva aos lábios os dedos sujos, degusta o liquido rubro e estende a mão na direção do semelhante. Olhos fixos nos olhos. O convite está feito.

Tremores. Em um sobressalto, levantou da cama. De novo, a mesma imagem: o sangue, o sorriso. Por um momento tentou afastar os fragmentos. Mirou a janela, podia ver manchas cor de chumbo em contraste no céu. ‘‘Vai chover’’, pensou. Respirou fundo e cobiçou um pouco de coragem.

Caminhou até o banheiro e enfrentou o espelho. Podia ver o corpo forte e altura desenvolvida. Sua face tinha linhas precisas, matemáticas. Um queixo equilátero alinhado a um nariz de ângulo reto.  Os cabelos eram negros e formavam pequenas espirais. De longe, viu que seus amigos ainda dormiam. Era o terceiro dia de viagem pelas montanhas e era provável que ficassem na pousada por causa do mau tempo.

Desceu as escadas até o refeitório. Tomou um gole rápido de café, vestiu o casaco e saiu. Estava frio e o vento impunha a sua supremacia sobre as árvores. Adorava a sensação do início de uma tempestade. Caminhou um pouco mais a frente e ascendeu um cigarro. Sentou-se sob as raízes de uma árvore enorme e curtiu os primeiros flashes disparados no horizonte. Não tinha medo do trovão.

Solitário, podia sentir mais uma vez o amargo gosto do vazio. Achava que ali, no meio da mata, ele não o encontraria. Ilusão. O sentimento era um companheiro fiel, estava presente em todos os lugares. Já estava cansado de não sentir. Lamentos. Também estava cansado de lamentar.

Diante de um pequeno bosque, próximo as dependências da pousada, sentiu o chamado. Não sabia de onde vinha, mas deixou se guiar pelo desejo. Começou a andar. Costurando as árvores, adentrou cada vez mais o bosque. Quando percebeu estava correndo, gritava para os antigos espíritos da floresta e abria os braços para os primeiros pingos de chuva. Sentiu-se zonzo e tropeçou enquanto as cores o rodeavam.

No chão, com a consciência agarrada, começou a se odiar. O que estava fazendo? Percebeu que estava perdido, gritou e ouviu em resposta uma voz assustadora: Me ajudem aqui! Aqui, aqui… O desespero espalhava como um vírus. Corria em meios as árvores e não via nenhuma diferença. Todas as direções eram iguais.

A chuva parou. Por um momento, recuperou as esperanças. Tentou agir logicamente, se posicionando pelo sol, mas as nuvens eram implacáveis. O frio atrofiava seus músculos, aumentava seu pavor. As pernas tremiam de exaustão.

Próximo a uma clareira, encontrou um pequeno lago.  Decidiu que seria melhor esperar até que alguém o encontrasse. Debruçou-se para beber um pouco de água e encarou a própria imagem. Reconheceu os olhos refletidos, não eram os mesmos que vira de manhã. O rosto duro e o semblante macabro estavam ali. Desejou fugir, mas algo o deteve.  Mirou as mãos que agora estavam sujas de terra e sangue. Arriscou contemplar o reflexo pela última vez. Um sorriso perverso se desenhou. O convite fora aceito.

Receita de inventar histórias

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Inventar uma história é como viajar. Uma viagem em que não se sabe muito bem de onde se parte nem para onde se vai. É como entrar em um trem e se deparar com uma garota, sentada sozinha admirando a paisagem. Quem é ela? Perguntas correm pela cabeça em direção aos dedos. Coloque um pouco de curiosidade e já se pode ver uma história crescer.

A cada frase: um susto, um sorriso. A porta se abre. O coração acelera. É um homem que se senta em frente à garota. Nervos em colapso. Pode ser um vil assassino, um pai amoroso ou quem sabe um amante secreto. A dúvida sempre acrescenta um gostinho especial.

Às vezes, é possível escolher milimetricamente os ingredientes. Em outras se usa mesmo os itens esquecidos na despensa. Umas memórias gastas, sentimentos confusos ou mesmo aquela imagem curiosa de um programa da TV. O que importa mesmo é a dedicação ao preparo. Boas histórias precisam ser mexidas até que os acontecimentos soltem da panela.

Dizem os bons contadores de histórias que o sangue de quem cria é o segredo de uma boa receita. Não precisa ser uma xícara, algumas gotas bastam. Aquecer o forno antes dos acontecimentos elementais, também é importante. Uma troca de olhares furtivos. Pronto, somos jogados na atmosfera de tensão.

Ouve-se um grito no vagão adiante. Os estranhos se aproximam e se questionam assustados. Daqui para frente, a história corre, cresce disforme até alcançar a forma perfeita no final. O que nem sempre acontece, é verdade. No entanto, o divertido mesmo, é ver as reações que uma boa história desperta nos que experimentam um pequeno pedaço.

A sombra de um olhar

A sombra de um olhar

Pela janela do carro observo a paisagem como um risco. O céu ilustra com manchas coloridas os últimos sussurros do dia. Queria que você estivesse aqui pra ver. Acho que iria gostar. Faz dias que encaro a estrada tentando recolher palavras para escrever uma resposta. Sei que minhas atitudes são injustificáveis; nem eu entendo como as coisas acabaram assim, acho que simplesmente acabaram.

Como em um disco riscado fico lembrando repetidamente dos seus olhos tristes. Olhos que clamavam por regaste. Olhos que eu não pude salvar. Li em algum lugar que meu nome quer dizer ‘‘luminoso’’. Lembrei da vez que você disse que eu parecia o sol quando sorria. Deve ser isso: eu era o seu sol, mas não consegui te iluminar.

Sempre achei que eu seria um grande homem, como os heróis das histórias infantis. Inocente. A  minha luz só trouxe sombra; escureci a sua vida. Sempre fui um homem de contrastes, você sabe disso. O problema foi não reconhecer que parte de mim era negra. Entenda, eu nasci para ser o bonzinho, de ar inocente e promessas sinceras. Nunca me disseram que dentro de mim também existia, o homem que poderia ferir e abandonar.

Entre postos de gasolina e banheiros podres das paradas rodoviárias, arrisco o encontro com minhas partes desconhecidas. Tenho descoberto a gentileza que reside nos estranhos. Há dois dias, me deparei com uma senhora muito distinta que se ofereceu para tirar cartas de tarô. Ela disse que meu futuro poderá ser errante, explosivo e com presença de amor. No final, ela alertou: você precisa confiar nas estrelas. Talvez deva acreditar nela, assim como deveria ter acreditado em você.

Nasci com o dom de enxergar a alma das pessoas. É minha benção e maldição. Em meio  a lucidez de prazeres e medos de outros, perdi a identidade dos meus sentimentos. Carrego no peito mágoas que não são minhas. Me apaixonei pela sua alma. Amei os seus desejos e pensamentos. A sua dor me embriagava.

As vezes quando ligo o rádio e as músicas despertam minha memória, sinto minhas lágrimas. Queria que você pudesse me ver chorando. Sempre fui duro na sua frente. Mesmo no último momento, era você que implorava, sem palavras, para que eu ficasse.

Mirando o crepúsculo solitário, me orgulho dos nossos sonhos. Construímos nosso paraíso e por um período de uma dança perfeita, fomos felizes. Errei em querer te salvar quando na verdade eu precisava ser salvo. Você devia ter usado suas asas para voar em direção a liberdade. Não ouviu o conselho dos sábios. Preferiu se aproximar do sol.

Admiração

A procura espreita meu desejo

Tento capturar o seu olhar, mas não consigo

A atração me convence

Não poso evitar

 

Fico perdido em minhas reações

Seu reconhecimento não faz parte dos meus planos

Só quero te assistir

 

Como uma criança você fica confuso

Porque eu não desejo a sua carne

Nem sua alma ou o seu espírito

 

O seu sorriso é o meu guia

Não te procuro como amante

Medidas me afastam da eternidade

Seu irmão, é o que eu quero ser